Sobre o tempo e suas amenidades
Já dizia Veríssimo, a gente foge da solidão quando tem medo dos próprios pensamentos.
A chuva caia insistentemente durante toda aquela tarde de inverno, anoitecera. As gostas de chuvas formavam desenhos incompreensíveis no vidro da janela e escorriam lentamente. De pé segurando uma caneca fumegante de café, ele observava distraidamente o bichano que se espreguiçava languidamente no sofá.
O dia transcorrera calmo e vagarosamente entediante, a noite chegou sorrateira com seus pensares e pesares, era sempre assim. No silêncio, as memórias afloravam e ganhavam vida. Um turbilhão de sentimentos e de lembranças tomavam conta dele, já não lembrava quando isso começou, apenas que já havia se tornado corriqueiro.
Ao entardecer se recolhia para seus devaneios e vagava por entre suas incomensuráveis solidões. Já dizia Veríssimo, a gente foge da solidão quando tem medo dos próprios pensamentos, pensou consigo enquanto sorvia um generoso gole de café.
Hoje o tempo o intrigava mais do que qualquer outra coisa, passara o dia inventando coisas e artimanhas para se distrair. Mas o tempo, ele não passa nem rápido nem devagar, ele apenas existe, confabulou consigo. Ora! Então por que vivemos criando subterfúgios para nos enganar quanto a essa verdade incontestável?
Lembrou-se da pilha de roupa que estava sobre a cama de manhã e precisava ser dobrada e guardada, e da pia cheia de louça suja do jantar, e como ficou procrastinando para realizar essas tarefas, mas que ao iniciá-las, não tinha como voltar no tempo e, portanto, quando terminou, logo já estava livre para fazer outras coisas que não fossem tão enfadonhas.
O difícil é sempre o primeiro passo, falou em voz alta, e rio da frase clichê que acabara de dizer. A vida é um tanto clichê retrucou pra si mesmo, como se justificando. O tempo é engraçado, continuou a refletir, porque quando gostamos de algum lugar, ou da companhia de alguém temos a sensação que ele corre, voa depressa demais, escorre por entre nossos dedos, enquanto que o oposto ocorre quando estamos em uma situação que não nos sentimos confortáveis.
Porém, esse não era o caso do dia de hoje, estivera ansioso e apreensivo, mas sem saber muito bem o porquê. E agora refletindo sobre isso, ao som do barulho da chuva, procurava compreender o quanto e como o seu tempo foi gasto no dia que se passou. Bebericou o último gole de café, suspirou fundo, e optou por acreditar que o copo estava mais cheio que vazio.
Das amenidades da vida, parar para refletir sobre o tempo, suas nuances e o que se fez dele durante o dia, é um privilégio e um dom que nem todo o homem foi agraciado, concluiu satisfeito. Depositou a xícara suja na pia junto com as demais louças do jantar e pensou consigo mesmo: amanhã eu lavo!
Confira essa outra crônicas no meu blog: Emaranhar-se de Poesia