Cultura em Cena: Jaqueline Silveira, uma artista da palavra
O produtor cultural Omar Dimbarre conta a trajetória da contadora de histórias e seus atuais projetos.
Jaqueline Silveira, artista da palavra, contadora de histórias, nasceu em Imbituba, no litoral sul de Santa Catarina, e reside atualmente em Joaçaba.
Imbituba é banhada por um mar de águas límpidas e cristalinas, que está cercado por morros cobertos por um tapete verde de mata atlântica, que são chicoteados por ventos fortes que vem do sul, e é a morada de baleias francas, que entre os meses de julho e novembro, deixam as águas geladas da Patagônia e vem amamentar seus filhotes na costa catarinense. Atrai praticantes de windsurf, kitesurf, e parapente, e sediou o Campeonato Mundial de Surfe (WCT) durante oito anos. Neste paraíso, que era um grande quintal da sua casa, ela teve uma infância embalada por histórias criadas e contadas por seus avós, eternos meninos, que deram asas à sua imaginação, e que desde muito cedo, fizeram da palavra uma arte em sua vida:
“Minha infância foi mágica. Foi nutrida por avós que contavam histórias. Por um avô espanhol e por uma avó gaúcha que me davam asas. Em frente a casa dos avós, tinha um morro, e ficávamos olhando e imaginando tudo o que estava guardado, e tudo que saía de dentro dele. Em dias de chuva, de temporal, o meu avô olhava para o morro e dizia – Olha lá! E apontava o dedo. - Você tá vendo ? Lá onde mora a Velha. Escuta! - O vento quando vem do sul tem uma grande sonoridade. Um assobio altíssimo, e misturado com aquela neblina, eu imaginava que a Velha estava tocando algum instrumento, um tambor, e que estava cantando. Este barulho é ela quem está fazendo no morro. Esta neblina, este espetáculo, é a Velha. A Velha tinha esta coisa engraçada. Ele dizia que o morro era o buraco da Velha, a Velha morava lá. E eu imaginava uma velha toda corcunda, uma bruxa boa. Imaginava que ela tocava um tambor, e cantava, e que ela saía para fora nestes dias de neblina, quando chovia. Contar histórias é isto – Meu avô me presenteava com imagens, e dizia algumas palavras - Ele não entregava de bandeja. Eu imaginava, o meu avô inventava. Ele tinha um vocabulário muito encantado, por que ele falava em reis, rainhas, bruxas. Cantava, inventava letrinhas de música. Meus avós são os principais responsáveis pelo meu gosto pelas palavras, pela literatura e por contar histórias.”
Quichinha, como era chamada carinhosamente por seu avô, quando recém o sol despertava, surgindo lá longe, onde a vista não encontra mais o azul do mar, saltava da cama, pegava sua bicicleta, subia a lomba, (palavra usada em Imbituba pra designar morro), e seguia freneticamente em direção ao melhor lugar do mundo. Um pote grande de pé de moleque e chocolate, que guardava junto sensações incríveis, que qualquer criança do mundo gostaria de abrir e sentir, estava sempre aguardando sua chegada. E na casa acolhedora que tanto gostava de estar, era alimentada; seu corpo com pé de moleque e chocolate, e sua alma, com histórias, com fantasia, com imaginação. Quando chegava a hora de retornar para casa dos seus pais, vivenciava a aventura maravilhosa de descer a lomba de bicicleta e sentir aquele arrepio percorrer todo o seu corpo.
“Eu trocava fácil brincadeira com crianças da minha idade para brincar com os velhos. Eu acho que eu sempre gostei de velhos. Eles tem algo de memória, os velhos contam. O velho é você vasculhar um baú, vasculhar um porão. Cavar estas histórias destes avós, é como cavar a areia da praia. Entender o que tem lá do outro lado do mar. O que também me encantava de ir na casa do meu avô e da minha vó, diferente da casa do meu pai e da minha mãe, é que lá o tempo lá não tinha pressa. Era um tempo na cadeira de balanço. O relógio dos meus avós eram cafuné. Minha avó tinha unhas compridas e me fazia cafuné. Eu tinha tempo para brincar, para ser escutada, e isto é uma coisa muito importante. Criança tem muito pra contar, e as vezes quem está no entorno não tem tempo para escutar, e meu avós escutavam. Escutavam e davam asas para minha imaginação. No final da rua que eu morava tinha uma ferrovia. E para mim aquilo era muito mágico, por que eu precisava atravessar o trilho do trem. Na minha rua tinha um fim, que não era um fim, era um trilho. Um trem que podia levar para qualquer lugar. Isto também era uma coisa que me encantava muito. Uma imagem que eu tenho muito forte, é de escutar aquele apito, escutar aquele ritmo, o ritmo do trem, de sair correndo de dentro de casa, para ir no portão, como qualquer criança. Para abanar, para dar tchau. E ficava imaginando para onde ele vai. - Quem será que está ai dentro? Será que tem gente ai no trem? Estas imagens são forte: Eu atravessava o trilho para chegar ao mar. O que tem do outro lado do trilho, o que tem, quando o mar termina? Será que tem alguma coisa no final do mar? Sempre foram perguntas e imagens que me encantaram. O mar tem um símbolo muito forte para mim. O mar é do infinito. E eu sempre gostei de brincar com estes fragmentos, com fragmentos da lagoa, com o mato, com a areia. Eu sempre troquei os objetos que tinham utilidade pra mim, para brincar com estes fragmentos, que pra mim eram encantatórios.”
Do som dos acordes do violão tocado pelo seu pai, à voz melodiosa de sua mãe que ecoava pelas paredes, a casa dos pais transpirava música. Além de assimilar toda esta riqueza musical que estava presente dentro do ambiente em que crescia, também cantou em coral de igreja, que foi uma escola para ter noção da sua voz. Uma certa manhã, lá nos seus sete anos, despertou com um estalo em sua mente: “Eu gosto de cantar. Eu acho que canto legal”. Saltou sobre sua bicicleta e lá foi contar aos seus avós sobre sua descoberta. Os dois pararam, e a ouviram. E após a sua apresentação, deram o veredito: “Você é uma Diva”. Jaqueline afirma: “Esta história que a gente tem de pequeno ela marca a gente de uma forma tão grande. Estes são os estímulos que eu tive, são as asas que me deram, os impulsos que me deram.
No começo dos anos 2000, uma mudança radical aportou em seu caminho, quando o pai foi transferido no seu emprego, para Xanxerê no oeste catarinense. Saía de cena a imensidão do mar, e entrava em cena a imensidão de grandes plantações de cereais. A magia da casa dos avós já havia deixado de existir antes disto, com o falecimento dos dois. Entrou na faculdade de letras, e paralelo começou a estagiar no SESC. Para suprir aquela infância tão fabulosa, mergulhou de cabeça;. foi estagiária e contou histórias: “Não havia mais areia para colocar os pés, agora era o barro no chão. Foi então que descobri o SESC, e foi onde pude compensar as faltas que sentia.”
Foi nesta época também, que aquele estalo que teve lá nos seus 7 anos de idade, ecoou pelas noites de Xanxerê. A noite virou palco para sua voz. Cantou em bares, pizzarias, restaurantes, festas de aniversários, e em eventos na praça: “Quando eu conto, eu sinto que eu estou cantando, quando eu escrevo também é uma forma de canto.”
Quando o SESC se instalou em Joaçaba, sabia que se assumisse a unidade ficaria nos bastidores, mas a ideia de movimentar, de mexer como uma comunidade, como o vento sul fazia no litoral, a instigava. Foi selecionada, uma nova mudança aconteceu, e durante nove anos foi técnica de cultura da unidade joaçabense. Neste período aproveitou para estudar produção cultural, e quando possível, contava histórias. Atualmente está escrevendo para um projeto de um livro de contos, e nas redes sociais estão hospedados cinco audiovisuais do projeto “Histórias do ao Redor”, que aconteceu através de um edital de cultura do estado de Santa Catarina. São narrativas curtas, prosas poéticas escritas pela própria Jaqueline, e gravadas em parceria com o fotógrafo Carlos Eduardo Carvalho.
“Ao longo deste mês de março, o espetáculo “Histórias para Avoá”, está sendo apresentado nas escolas rurais de Joaçaba, Herval d’Oeste, Água Doce, Capinzal e Campos Novos. Em dez encontros, o projeto promove o acesso à literatura de tradição de oral, incentiva o gosto pela leitura e valoriza as comunidades rurais. Esses encontros são abertos a crianças, estudantes do ensino fundamental e professores das redes públicas de ensino. O espetáculo reúne histórias de personagens avoados e com desejo de descobrir as bonitezas da vida. O projeto foi selecionado no edital da Lei Aldir Blanc 2021, executado com recursos do governo federal e lei Aldir Blanc de Emergência Cultural, através da Fundação Catarinense de Cultura.“
Jaqueline comenta uma das suas inspirações para o espetáculo: “No meu quarto de estudos, eu tenho uma foto de quando eu era menina, com seis ou sete anos, sentada em um balanço, que é um símbolo para mim de voo, de impulso. Tinha uma foto igual na casa dos meus avós. As vezes eu olho para esta menina e digo: Espero que você goste desta história.”
No dia quatro deste mês, acompanhei o espetáculo “Histórias para Avoá”, na Escola Rural Municipal Professor Alcino Fernandes, na Linha Sede Belém, em Herval d´Oeste. O encantamento dos alunos com as histórias apresentadas e com a performance da artista Jaqueline Silveira, contando, cantando e tocando ukulele, era visível em seus olhares fixos e compenetrados, acompanhando tudo que se desenrolava no palco. “Histórias para Avoá” é um convite para dar asas à imaginação, e voar. Foi lindo, e como um adulto que carrega eternamente uma criança guardada dentro de sí, também voei na imaginação.
As fotografias utilizadas para ilustrar esta matéria foram batidas pelo fotógrafo Carlos Eduardo Carvalho
Para conhecer mais sobre a artista Jaqueline Silveira, acesse sua página no Instagram - @jaquelinesilveiras
Para conhecer o projeto Histórias ao redor, e outros vídeos, acesse seu canal no YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCGedTO3I9-YiA8UmLf5R06A
Cultura em cena é uma coluna escrita pelo produtor cultural Omar Dimbarre, para destacar o que se faz no meio cultural da região.